sábado, 6 de abril de 2013

LEMBRANÇAS DE UM RECIFE ANTIGO



O dia amanhece. São cinco horas da manhã. O apito do trem de melaço anuncia. É alvorada para os quartéis de Marinha. É também o fim de festa nas boates ao redor. Apagam-se as luzes. As radiolas de ficha encerram as suas funções, mas a música ainda está no ar e na mente dos frequentadores, que sem a mínima vontade empreendem o inevitável regresso as sua casas, enquanto outros, ao seu trabalho. São dois Recifes que se chocam entre o dia e a noite.

O velho cais com seus cabeços abarrotados de cabos que prende e acaricia os navios que o mar trouxe. Os trabalhadores se misturam com os marinheiros e as poucas prostitutas que vieram se despedir dos seus amores de ocasião, que em breve o mar os levará de volta: alguns voltarão para os seus braços, outros não mais voltarão, é um eterno adeus. Os rebocadores passam navegando a todo vapor. Aqui e acolá o ensurdecedor barulho dos guinchos de carga e descarga a trabalharem nos navios atracados na Praça Rio Branco, no Marco Zero de Recife. As pessoas começam a se aglomerarem: uns em busca e serviço temporário, já outros porque largaram de algum serviço, alguns desocupados e outros que vieram apenas ver o velho porto e o mar, o mar que agora traz uma suave brisa como que a acariciar a velha cidade, que abre as portas dos seus comércios para mais um dia de labor, até que a noite novamente se faça presente com seu glamour, a noite do Velho Recife, conhecido popularmente como Rio Branco.

Fecho os olhos! Parece que estou vendo tudo ao meu redor: os letreiros de neon, as artísticas radiolas de ficha importadas por Sonidos JoAguiar & Cia, o velho e falante João Aguiar, a galeria onde se bebia o melhor leite maltado de Recife (onde se fazia o primeiro lanche para começar a noitada). De lá se ouvia o lamento de uma Bouzuki com a música tão diferente. Era Markus, o grego a chamar seus compatriotas para a farra no seu bar, que não por acaso, ficava logo acima do bar “do 28”, número de inscrição da estiva do dono do bar, que vivia repleto de intelectuais e poderosos da cidade. No cardápio um legítimo scotch e, de tira gosto, queijo do reino e azeitonas importadas legítimas, verdes ou pretas, que ficava ao gosto do freguês.

Foi neste bar que conheci o maior intelectual de Recife, Tomás Seixas, hoje tão esquecido, polêmico, intrigante, mas de uma sensibilidade extrema, também um grande poeta. De vez em quando, íamos jantar no restaurante Gambrinus, com uma excelente comida a la carte, e muito bem frequentado. Lembro que entre a rua da guia e a do Bom Jesus tinha uma barraca conhecida como a barraca do sargento, foi onde eu comi como tira gosto, pela primeira vez, o que hoje o povo inteiro conhece como “arrumadinho” que, na época, ele vendia como charque frita com feijão de corda e, de quebra, vinha farofa e verdura picadinha para fazer volume no prato (isto acompanhado de uma dose da branquinha (cachaça).

Para iniciar a noite de farra, era tudo festa. As mulheres a se exibirem nas sacadas das boates, outras nos bares, todas bem vestidas como se fossem a uma festa. O cheiro de perfume francês se espalhava no ar, presente dos marinheiros que vinham de além mar. Ainda existia cavalheirismo e respeito entre as pessoas, eram raras as confusões e, quando aconteciam, era mais por exaltação de alguém que se excedeu na bebida. Nada que não fosse logo resolvido por uma dupla de policiais (Cosme e Damião), ou uma escolta de Fuzileiros Navais. Mas, voltando aos neons, que ficavam nas fachadas

das boates, eles eram intensos, cheios de cores vivas. Alguns até piscavam como que a invadirem a noite e disputarem com as estrelas. Podia-se ler alguns nomes em francês e inglês, como Moulin Rouge, Chanteclair, Capitólio, Silver S'tar, Tony's Drinks, Black Tie, Adilia's Place e, finalmente, os de nome nacionais, como Bar OK, Bar Duas Américas, Bar Royal, Atenas bar, Bar Sargaço, o famoso Bar São Francisco e as boates da Baiana e Bossa nova.

A noite era pura fantasia e alegria. Não havia drogas ou traficantes. Roubo? Era uma coisa rara! Todos se entendiam nos finais de semana, e muitos estendiam a farra durante o dia nos arrecifes (Hoje parque das esculturas de F. Brennand), e quem fazia o transporte da trupe era o jovem barqueiro Severino (Conhecido como “Biu do Rato”, ainda hoje exercendo a profissão), ou o saudoso Sr. Euclides. Farra, só com hora marcada para voltar ou ter que ir a pé até o Pina e continuar no bar Casa Blanca. São lembranças de um Recife que não voltam mais, pois hoje o que nele há de novo não cede espaço para que o Antigo um dia volte. Está presente apenas na memória de quem viveu.

(Marcos Pereira - poeta, advogado e boêmio)

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