quarta-feira, 16 de junho de 2010

O DOIDO DA GARRAFA




Ele não era mais doido do que as outras pessoas do mundo, mas as outras pessoas do mundo insistiam em dizer que ele era doido.

Depois que se apaixonou por uma garrafa de plástico de se carregar na bicicleta e passou a andar sempre com ela pendurada na cintura, virou o Doido da Garrafa.

O Doido da Garrafa fazia passarinhos de papel como ninguém, mas era especialista mesmo em construir barquinhos com palitos. Batizava cada barco com um nome de mulher e, enquanto estava trabalhando nele, morria de amores pela dona imaginária do nome. Depois ia esquecendo uma por uma, todas elas, com exceção de Olívia, uma nau antiga que levou dezessete dias para ser construída.

Batucava muito bem e vivia inventando, de improviso, músicas especialmente compostas para toda e qualquer finalidade, nos mais variados gêneros. Uai aí aquela da mulher de blusa verde atravessando a rua apressada, e o Doido da Garrafa imediatamente compunha um samba, uma valsa, um rock, um rap, um blues, dependendo da mulher de blusa verde, do atravessando, da rua e do apressada. Geralmente ficava uma obra-prima.

Gostava muito de observar as pessoas na rua, do cheiro de café, de cantar e de ouvir música. Não gostava muito do fato de ter pernas, mas acabou se acostumando com elas. De cabelo ele gostava. Em compensação, tinha verdadeiro horror a multidão, bermudão, tubarão, ladrão, camburão, bajulação, afetação, dança de salão, falta de educação e à palavra bife.

Escrevia cartas para ninguém, umas em prosa, outras em poesia, como mero exercício de estilo.

Tinha mania de dar entrevistas para o vento e já sabia a resposta de qualquer pergunta que porventura alguém pudesse lhe fazer um dia.

Ajudava o dicionário a explicar as coisas inventando palavras necessárias, como dorinfinita.

Adorava álgebra, mas tinha particular antipatia por trigonometria, pois não encontrava nenhum motivo para se pegar pedaços de triângulos e fazer contas tão difíceis com eles.

Conhecia mitologia a fundo.

Tinha angústia matinal, uma depressão no meio da tarde que ele chamava de cinco horas, porque era a hora que ela aparecia, e uma insônia crônica a quem chamava carinhosamente de Proserpina.

Sentia uma paixão azul dentro do peito, desde criança, sempre que olhava o mar e orgulhava-se muito disso.

Acreditava no amor, mas tinha vergonha da frase.

Às vezes falava sozinho, preferia tristeza à agonia.

Todas as noites, entre oito e dez e meia, era visto andando de um lado para o outro da rua, método que tinha inventado para acabar de vez com a preocupação de fazer a volta de repente, quando achava que já tinha andado o suficiente. (Preferia que ninguém percebesse que ele não tinha para onde ir.) Enquanto andava, repetia dentro da cabeça incessantemente a palavra ecumênico sem ter a menor idéia da razão pela qual fazia isso.

Durante o dia o Doido da Garrafa trabalhava numa multinacional, era sujeito bem visto, supervisor de departamento, ganhava um bom salário e gratificações que entregava para a mulher aplicar em fundos de investimento.

No fim do ano ia trocar de carro.

Era excelente chefe de família.

Não era mais doido do que as outras pessoas do mundo, mas sempre que ele passava as outras pessoas do mundo pensavam, lá vai o Doido da Garrafa, e assim se esqueciam das suas próprias garrafas um pouquinho.


( Do livro "O Doido da Garrafa" de Adriana Falcão)

2 comentários:

Maria Cecília Villanova Caminha disse...

Gosto muito de seu blog, e gostei muito do conto,um dos que mais gosto. Já tinha o lido no livro.
Tb gosto muito de suas poesias,são muito pensativas,e a que mais gosto é AUTO-ÉXILIO.
CONTINUE ESCREVENDO!!ABRAÇOS

Brasil Desnudo disse...

Bom Cecília!
Achei interessante seu post!
Ontem mesmo, comentando com uma amiga seguidora do meu blog, falava sobre esse assunto. O de fazer a crítica ou da discriminação, sem conhecer de fato as pessoas, ou o porque delas fazerem algo fora do normal.
Essa amiga minha citou uma frase
"Gentileza gera Gentileza".
Não sei se vc já ouviu, ou leu algo a respeito.
Mas Gentileza foi considerado um louco, um mendingo nas Ruas do Rio de Janeiro na década de 70.
Daí eu expliquei a ela, essa minha amiga que, julgarmos sem ter conhecimento do fato, em pricipal uma pessoa, talvez seja um crime ou ignorância.
Gentileza foi um grande empresário em Niteroí, um município do RJ. Um homem de grande fortuna.
Sendo que!
Na década de 70, após um incêncio em um circo em Niteroí, onde ele levara sua família, mulher e três e três filhas. Um trágico e fatídico acidente após esse incêdio, vitimou toda sua família.
Desde então, esse homem cruzou a Baia da Guanabara, vindo para Capital, Rio. E ali permaneceu nas ruas, escrevendo seus poemas nas calçadas, no meio das ruas, etc. Por fim, se instalou nos pilares do Viaduto do Gasômetro, próximo a Rodoviária do Rio. Nesses pilares ele escreveu seus poemas, onde sempre frisava "Gentileza Gera Gentileza".Isso até sua morte.
Chegou a ser tema de uma escola de samba, no carnaval do Rio.
Atualmente seus versos e poemas escritos nesses pilares, permanecem lá até hoje, graças a uma Lei que tornou eses versos, um Patrimonio da Humanidade. Um tombamento Público.
Bem!
Digo eu, Marcio!
Não devemos julgar nada e ninguém sem pleno conhecimento dos fatos, mesmo aqueles menos importantes.

Bjs

MARCIO RJ