terça-feira, 18 de maio de 2010

ENTREVISTA COM O POETA FRANCISCO ESPINHARA


Em tom raivoso, o poeta chama “novos” de “analfabetos literários” e diz ser um pessimista “chato” por convicção
( Por Brás Macedo)



O poeta Francisco Espinhara orgulha-se de ter sido, durante toda a vida, um soldado a serviço de uma causa. Há mais de vinte anos lendo, estudando e ensinando literatura, traçou e cumpriu, de maneira obstinada, a trajetória que o levou a alcançar um objetivo: livrar-se, mesmo que parcialmente, dos grilhões literários e da rigidez das normas que, via de regra, obscurece o talento da invenção e da criatividade poéticas. Nesse percursso, fez mais inimigos do que “parelhas”, brigou, esperneou e gritou o seu desespero como um cão a rosnar, sempre alerta aos atentados da língua pátria.

Agora, o soldado virou general. É considerado por seus pares um dos mais atuantes e inquietos poetas de sua geração. Organizou encontros e seminários de literatura marginal, editou jornais e livros alternativos de poesia conheceu aqueles que se tornariam mais tarde seus personagens de alcova: vagabundos, desempregados, revolucionários, poetas, prostitutas, vigaristas, siucidas, enfim, humanos em geral. Hoje, Espinhara quer desfrutar de sua mais recente cria: o livro “Elaboratório”, uma coletânea de textos em prosa poética que reúne, de uma só tacada, escritos inéditos, além de comentários generosos da crítica(trechos desses comentários estão nas páginas que seguem). Em entrevista a Chalopa, o poeta dá mais detalhes da recente obra, fala de pessimismo e poesia marginal, detona os falsos escribas, ironiza as “panelinhas” e espirraça os gestores de nossa política cultural: “...os organizadores pecam por não terem domínio do contexto histórico...”


Chalopa – Quando e como foi o seu primeiro contato com a literatura?

Francisco Espinhara – Aos 10 anos, quando estranhava e ficava fascinado com o vocabulário rebuscado de Machado de Assis, Aluísio Azevedo e Rui Barbosa, nas coleções que minha irmã, professora de Português, recebia das editoras. Aos 11 anos, ganhei um segundo lugar em um concurso de redação na escola Mariano Teixeira, cujo tema era o ‘Dia das Mães”, justamente dois anos após o falecimento de minha genitora.

Chalopa – Que autores o influenciaram nessa época?

Francisco Espinhara – Não posso em influências conscientes, racionais, mas Machado de Assis me impreguinou, ainda não compreendia a sua densidade. Lia também muito Agatha Christie, Hitchcock, gibis, fotonovelas, Conan Doyle. Eram leituras de descobrimento, de lazer, sem tirar delas a essência que viria, mais tarde, em obras deveras instigantes.

Chalopa – Foi neste tempo que você descobriu o gosto pelo mórbido e pela crença no pessimismo?

Francisco Espinhara – Não totalmente, mas algo em mim já se encaminhava para essas trevas. Minha introspecção era sinal incipiente do que viria a me tornar ao longo do tempo, um chato prepotente, “dono” e prenunciador do nada, pelo qual lutamos desvairadamente. “Como a vida muda/ como a vida é muda/ como a vida é nuda/ como a vida é nada/ como a vida é tudo.” Assim falou Carlos Drummond de Andrade, refletindo o que sinto, com exceção do último verso.

Chalopa – O que o fascinou na idéia do pessimismo?

Francisco Espinhara – Em verdade, em verdade, não tenho nenhum fascínio ou apreço pelo pessimismo, mas é algo inerente, uterino, com o tempo fui ruminando e o compreendendo na sua forma mais ampla, na sua essência, que não passa da constatação da miséria e da futilidade, em todos os sentidos, em que estamos atoleimados.

Chalopa – Como é colocar o sentimento pessimista na literatura? Sim, porque existe entre as pessoas, um preconceito muito grande...

Francisco Espinhara – É como expor o que nos ladeia, principalmente aos que querem jogar o lixo mundano para debaixo do tapete, é escancarar os dentes podres e mostrá-los à humanidade. Quanto ao preconceito, é mais por medo de se olharem no espelho e dizerem: “Esse monstro sou eu?!”

Chalopa – Mas para entender melhor o que você descreve, seria interessante conhecer um pouco o que você pensa e sente. Por exemplo, como você definiria o seu estado de angústia?

Francisco Espinhara – É um estado permanente, indelével, sem férias ou folga, uma vontade imensa de derrapar nas voltas do mundo, cair fora, escorregar. Uma angústia de não ver ninguém, posto me causar asco e nojo àquilo que há dentro do invólucro. Abomino a raça humana, por tudo o que ela representa: engodo, engodo e engodo.

Chalopa – O que diria se, por acaso, alguém lhe perguntasse: “você não acha que o mundo já está cheio de tristeza e angústia para que a gente dê importância ao pessimismo?”

Francisco Espinhara – Muitos me indagam sobre isso e geralmente eu silencio, já que reconhecem que o mundo está repleto de tristezas. Também não sou nenhum profeta para ditar no que as pessoas devem ou não acreditar, eu acredito e isso me basta. Mas é bem verdade que das muitas pessoas que me questionam, elas, quando em contrariedades, vêm e me felicitam pelas “idéias”.

Chalopa – E quanto ao Movimento de Escritores Independentes de Pernambuco( MEI ), do qual você é um dos principais interlocutores. Existe até um livro de sua autoria que esclarece de vez a questão. Explique melhor como se deu o movimento...

Francisco Espinhara – O Movimento de Escritores Independentes foi um marco na década de 80, congregou grupos os mais diversos em suas trincheiras literárias, filosóficas e políticas, fazendo um só “corpo” para combater as oligarquias intelectuais então vigentes. Elas não davam abertura para os novos escritores, principalmente por estes não terem sobrenomes tradicionais e quilométricos. Éramos tidos por alguns como adolescentes sujos e malcriados. Éramos organizados e tínhamos um manifesto muito bem elaborado, líamos bastante e levamos a literatura ao povo através dos recitais; por meio dos jornais alternativos( que eram realmente jornais alternativos e não “folhinhas” narcisistas); por promoção de debates e concursos de poetas vivos e presentes( Alberto da Cunha Melo foi um dos contemplados). Não havia lugar para egocentrismos, havia sim, espaço para as melhores propostas. Quem quiser maiores informações é só manusear o livro que publiquei sobre o assunto, Movimento de Escritores Independentes de Pernambuco, Histórico e Coletânea, (1980 / 1988), pela Editora Universitária. Era o que muitos e muitos pretensos poetas deveriam fazer, para não ficar pensando que são originalíssimos.

Chalopa – Gostaria que você explicasse também sobre as origens da dita “poesia marginal”, como chegou ao Brasil e como influenciou a nossa literatura?

Francisco Espinhara – Tenho para mim que, apesar de sempre ter existido poetas / escritores que ficaram à margem, no sentido mais amplo desta nomeclatura, a célula inicial surgiu com a geração beat e foi se alastrando mundo avante. No Brasil, os primeiros indícios nos remete ao após golpe de 64, onde de forma mimeografada os escritores ganhavam as ruas; já nos anos 70, houve mais evidência com vários grupos e publicações, o mais famoso deles era o Nuvem Cigana, do Rio de Janeiro; nos anos 80, o Brasil foi tomado literalmente pelos subterrâneos, com destaque para o Movimento dos Independentes, do qual Pernambuco foi o maior expoente.

Chalopa – No seu caso, podemos afirmara que suas duas maiores influências sõ Augusto dos Anjos e Charles Bukowski?

Francisco Espinhara – Sim e não. São os que mais se sobressaem por serem claros e diretos naquilo que abomino: a radiografia da podridão humana. Mas, de forma mais rebuscada e sutil, e com igual intensidade, ainda me dão enorme prazer alguns livros de Machado de Assis, Lima Barreto, Dostoievski( o maior de todos), Franz Kafka, Graciliano Ramos, EdgarAllan Poe, Faulkner, Heminguay e o filósofo Nietzche. Quanto aos demais poetas, alguma coisa de todos aqueles de boas palavras.

Chalopa – Mas voltando para a poesia marginal, como ela se incorporou à cena literária recifense?

Francisco Espinhara – Nos finais dos anos 70, havia alguns grupos formados: o Bandavuô, Nós Atados, Poemar, Grupo do 2001, que viviam e produziam isoladamente e não usavam nenhuma nomeclatuar correlata à marginal( ou novos, undergrounds, periféricos, alternativos, subterrâneos, independentes). Andavam dispersos como os grupos atuais. Com o primeiro Encontro de Escritores Independentes, realizado em agosto de 1981, na Fundação Casa da Criança de Olinda, todos os grupos se congregaram em uma só voz para buscar mais alargamento na nossa malfadada cena literária. Daí em diante, foi uma avalanche de jornais, recitais, debates, concursos, rusgas e um certo respeito por aqueles jovens que não seguiam os métodos tradicionais da literatura, mas a levavam muito a sério.

Chalopa – Existe uma crítica corrente que hoje os novos poetas não gostam de ler, motivo pelo qual não evoluem em sua arte, exatamente por faltar-lhes o conhecimento necessário. Você concorda com essa corrente?

Francisco Espinhara – Concordo plenamente. A maioria desses poetas( nem sei se são poetas realmente, ou sei?) são analfabetos literários, não escrevem “coisa com coisa” nem dizem nada nos seus “maus escritos”, com raríssimas exceções. Eles gostam mesmo é dos recitais: gritam, pulam, fazem firulas, piruetas e poesia, que é bom, necas, ela, a poesia, a nossa dama bastrda, passa ao largo. Não vão chegar a lugar nenhum, vão ficar “temporariozinhos”. Não há tradução, eles simplesmente fazem trocadilhos, juntam palavras, põem-nas em fileiras e ficam muito orgulhosos com os elogios duvidosos dos falsos gurus, que deveriam tomar vergonha na cara e muita coragem para dizer: “rasguem, joguem fora, tentem outra coisa...”. Olhe que não estou falando da poesia tradicional, onde a burilação é mais complexa, estou falando de versos “livres, leves e soltos”.

Chalopa – Ezra Pound dizia existir três categorias de poemas: as que exploram a musicalidade da língua; as que lançam uma imagem, ou pintam um quadro, e as que brincam com o sentido das palavras no contexto em que elas são usadas. Qual dessas categorias é mais presente nos seus poemas?

Francisco Espinhara – Há muito que trabalho tais preceitos, sem que isso seja uma regra visceral. Atualmente deixei a poesia de “molho” e elaboro meus papéis em um sincretismo entre prosa e poesia: “proesia” talvez, no do poeta Jaci Bezerra.

Chalopa – E quanto à qualidade do que se faz hoje na literatura pernambucana. Você diria, no seu pessimismo biológico, que estamos à beira do precipício?

Francisco Espinhara – Bem, já falei sobre a maioria dos mais recentes poetas / escritores, não foi? Uma lástima, por sinal. Mas há que se ver que não estamos no precipício, temos excelentes poetas: Alberto da Cunha Melo( um dos melhores do país), Marcus Accioly, Jaci Bezerra, Ângelo Monteiro, Lucila Nogueira, Tereza Tenório, Arnaldo Tobias( anos 65); Eduardo Martins, Cida Pedrosa, Fátima Ferreira, Héctor Pellizi, Inaldo Cavalcanti, Cícero Melo, Pedro de Lara, Samuca, Erickson Luna, Dione Barreto, Celso Mesquita e Luiz Carlos Monteiro( anos 80); Marcos de Morais, Malungo, Bruno Candéas, Cecília Villanova, Chicão e uma das mais gratas surpresas, Fernando Chile( anos 90). Se alguns pouquíssimos não foram citados, não é que sejam simplórios, mas, no momento, esses que nomeei são os que fazem a literatura se mover, e bem. Quanto aos prosadores, temos três gigantes: Raimundo Carrero, Gilvan Lemos e o personalíssimo Fernando Monteiro.

Chalopa – Ítalo Calvino, referindo-se ao escritor James Perdy, dizia ser a boa literatura da América, a clandestina, de autores desconhecidos, e só por acaso alguns deles vinham à luz, rompendo o cerco da produção comercial. Calvino disse isso em 1959. É o que ocorre literatura marginal, não é mesmo?

Francisco Espinhara – Poderia citar Poe, Bukowski, Wittman, Augusto, Cruz e Souza, Lima Barreto, Sousândrade, etc... Mas vamos ficar na atualidade, veja-se o caso de Alberto da Cunha Melo, que não é umpoeta underground. Quanto aos alternativos dos anos 80, alguns, Samuca e Erickson Luna, se estivessem no Centro-Sul do país, onde “besteirinhas” são sucesso nacional, certamente estariam “consagrados”. Acho que o problema é regional e de contato com a grande mídia e com editores de renome, que hoje, no Sul, abraçaram a causa marginal comercialmente, ganhando em “espécie” e em qualidade. Em Pernambuco, temos ótimos autores, para dar e vender.

Chalopa – Além disso, existe também preconceito de parte da grande imprensa em não abrir espaço para os independentes. Por que você acha que isso ocorre?
Francisco Espinhara – Bem, vou colocar mais lenha na fogueira. Um “cara” como Orismar Rodrigues, colunista social, dar-se espaço, promove-se na sua própria coluna, joga confetes em si e nos sobrenomes seculares. Tudo fica ali mesmo, entre eles, na frescurinha dos ouros e na panelinha do chá das cinco. Os jornais já não são os mesmos, na década de 80 ainda havia um Cunha Melo, um Marco Pólo, um Mário Hélio( apesar de peçonhento). Hoje o que vemos é um desfile de release já prontos, enviados pelas editoras e transcritos pelos colunistas. Os articulistas parecem mais da Folha de São Paulo do que dos diários locais. Proponho um dia mensal para a queima desses jornais( uma pilha, uma tulha), em praça pública, para verse pelo menos eles se dão conta do grande fogaréu.

Chalopa – E quanto à prefeitura, o que você achou da iniciativa de publicar os poetas marginais do Recife, em três volumes, o segundo lançado recentemente?

Francisco Espinhara – Por lado péssimo, por outro, ótimo. Deveriam ter mais acuidade na seleção dos poetas e na revisão. Os organizadores pecam por não terem o domínio do contexto histórico, apesar de um ou outro ter participado do príncipio de tudo. Há também um certo nepotismo, apadrinhamento. Há poetas que deveriam ter “saído de cara”, pois, além de serem de boas palavras, deram o “sangue” para que esse projeto, hoje, viesse à tona. Por outro lado, não me contradizendo, é ótimo por incentivar os que estão iniciando( ainda que alguns muito mal) e por abrir um precedente no seio oficial. Há também a questão do registro histórico, imprescindível para que a literatura teórica tenha suporte crítico. No mais, parabéns.

Chalopa – Vamos agora voltar no tempo. Nos anos 80, os fanzines tinham uma linha editorial clara e definida ideologicamente. Hoje, eles reduziram o já minguado espaço e o interesse pela crítica cultural. Como você enxerga essa questão?

Francisco Espinhara - Acho que as “folhinhas” poderiam ser substituídas por verdadeiros jornais alternativos. Os nanicos surgiram para suprir uma lacuna que os grandes diários não quiseram acolher, posto serem reféns do poder, “bucha de canhão” das “igrejinhas” elitistas e não se dão, fogem, a temas polêmicos e a escritos fora dos padrões convencionais. Daí a necessidade, como nos anos 80, de termos fanzines em “alta voz” e não apenas “folhinhas egocêntricas” que repetem sempre os mesmos autores, quando não os editores, ou copiam, quase invariavelmente textos de outras “folhinhas” ou de alternativos mais robustos. A vaidade impera e há algo de “marocas” nas entrelinhas. Nos anos 80, havia uma série de jornais com linha editorial definida, clara e séria. Louvo as “folhinhas” pelo empenho em divulgar a literatura, mas os editores poderiam se esforçar mais, já que as dificuldades atuais são bem menores do que as da década de 80.

Chalopa – Por outro lado, os novos poetas rejeitam enfaticamente sua postura. Eles “presunçosos”, principalmente quando se arvora ao direito de arbitrar que é ou não poeta. Eles dizem também que você é muito injusto na opinião que emite. O que você tem a dizer sobre isso?

Francisco Espinhara – Não sou chato, sou chatíssimo, arrogante e presunçoso naquilo em que tenho certo domínio. Todo mundo quer elogios, então faça por onde merecê-los. Muitas vezes o poeta Alberto da Cunha Melo rasgou, em mesa de bar, alguns pápeis meus, ao invés de ficar chateado, aborrecido e muito ofendido, eu reconstruía o texto de outra forma ou, às vezes, nem reconstruía, jogava-o ao vento ou ao lixeiro. Eu era jovem e aquele gesto de Alberto foi minha melhor aula para persistência, paciência e laboração de um escrito. Sou chato, chatíssimo, mas tão chato que a todo momento eu quero me livrar de mim mesmo, quanto a ser injusto nas opiniões emitidas, mais tarde, se conseguirem superar os maus escritos e se eu ainda estiver vivo, dou a mão à palmatória e eles poderão dizer: “aí, seu filho da puta, somos grandes poetas...”

Chalopa – Para finalizar, a sua mensagem de otimismo para o ano que se inaugura?

Francisco Espinhara – O ano nem se inaugura nem se finda, o tempo é um só, constante, com suas intempéries a nos fustigar ininterruptamente. Não tenho nada e nada de esperanças, odeio a vida em si, o que me retém para tentar reconstruí-la de um modo material(“conforto e segurança”) é o meu filho Iago, caso contrário...

(Jornal Chalopa, Recife - PE, janeiro de 2004)

Um comentário:

Cicero Melo disse...

Cecília,

Foi uma surpresa enorme descobrir este teu blog. Não conhecia esta entrevista com o Chico. Foi um dos meus melhores amigos, ou melhor, um irmão, de versos e cevadas mil, pelas noites do Recife. Estivemos juntos até seu precoce encantamento.

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http://geracao80.nafoto.net

Meu e-mail para contato é:

cnacimento@uol.com.br

Temos muito o que conversar.

Abraços,

Cicero Melo